terça-feira, 3 de julho de 2012

Ideias - Bernard Charlot
A pedagogia ativa é uma conquista da professora com os alunos*

Bernard Charlot**

Meu tema: a escola e as classes trabalhadoras. Para começar, gostaria de dizer que houve uma época, nas décadas de 60, 70 do século passado, em que as crianças das classes trabalhadoras nem entravam na escola. Hoje, a situação mudou, pois quase todas as crianças estão matriculadas nas escolas. Mas há crianças que têm problemas na escola, e temos que ter consciência de que o direito de cada ser humano não é o de ser matriculado na escola, mas, sim, de ter acesso ao saber e às referências que permitem a cada um melhor entender o mundo, a vida e a si mesmo. Esse é o problema a ser resolvido. Um problema de políticas educacionais, em que entram muitos fatores: a formação dos professores, seu salário, e também um problema que ocorre dentro da sala de aula.

Vocês têm de saber que, no chamado Primeiro Mundo, existem de 10 a 12% de jovens em cada geração que não conseguem chegar ao nível considerado mínimo no país. Apesar de esses países terem dinheiro, de os professores possuírem uma boa formação, salário correto, condições ótimas de trabalho, esses jovens ainda permanecem com problemas em relação à escola. Essa é a nossa dificuldade. Para melhor entendê-la, pesquisei bastante tempo a questão do fracasso escolar, perpassando pela questão da relação com o saber. Hoje, vou falar da relação dos jovens com o saber. Não me recuso a dar “receitas”, mas, na verdade, o que é interessante são as técnicas; um professor precisa de técnicas. Quando a “receita” é esclarecida, não é mais “receita”, é técnica de trabalho. Vou falar mais de resultados de pesquisa, mas podemos falar de como é a prática. A pesquisa foi feita durante quase 20 anos, na França, nas periferias das cidades francesas, onde há muitos filhos de imigrantes, nesses lugares onde, às vezes, eles estão queimando carros, como mostram os noticiários.

Estamos trabalhando também no Brasil. Com a Unesco de Brasília, acabamos de terminar uma enorme pesquisa sobre o sucesso e o fracasso escolar, com base nos resultados do Saeb na quarta série do ensino fundamental. Foi uma pesquisa em 10 estados brasileiros, inclusive São Paulo, com mais de 200 pesquisadores trabalhando na coleta de dados. Publicamos um livro há quase três semanas, chamado Re-pensando a escola. É uma pesquisa sobre o que vivem professores, diretores, pais e alunos da quarta série da escola pública e um pouco da segunda série. É possível baixar o livro, de graça, na Internet pelo endereço http://www.unesco.org.br.

A questão da relação com o saber
Relação com o saber, do que se trata?! Fundamentalmente, trata-se de tentar responder a uma pergunta de três formas. Para um aluno dos meios populares, qual é o sentido de ir à escola? Qual é o sentido de aprender, quer na escola, quer fora da escola? Acho que essas três questões são fundamentais. Por sinal, podemos levantar essas três perguntas a respeito da professora. Perguntar para ela: qual é o sentido de ir todo dia para ensinar na escola? Por que a cada dia vocês vão à escola? Pelo menos, quando não tem chuva, já que a pesquisa mostra que as crianças fazem um esforço enorme para ir à escola quando chove e, às vezes, não há professora. Qual é o sentido de ensinar crianças para vocês? Por que essas perguntas sobre a relação do saber? Qual deve ser nossa pergunta quando um aluno tem dificuldade na escola? Acho que devemos descartar esse discurso muito brasileiro sobre professores tradicionais e construtivistas.

Na verdade, vocês têm práticas basicamente tradicionais, como os professores franceses e também os do mundo inteiro, porque a própria estrutura da escola, o que os pesquisadores chamam de forma escolar, leva a práticas tradicionais. O problema é que há práticas tradicionais boas e ruins. Esse é problema. O professor brasileiro possui práticas tradicionais, mas ele sabe que tem que dizer que é construtivista. O que é ser construtivista é outro problema...

Acho que tem de sair dessa forma de colocar a pergunta. A pergunta importante é outra. Quando o aluno tem dificuldade, a pergunta fundamental é: “Será que este aluno estudou?”, “Será que ele teve uma atividade intelectual?”. Porque se ele não teve nenhuma atividade intelectual, claro que não vai aprender! O problema fundamental é o da atividade intelectual. Só aprende quem tem uma atividade intelectual. Escola não é um lugar para ensinar, mas para o aluno aprender. O trabalho do professor não é ensinar, mas fazer alguma coisa (inclusive ensinar) para que o aluno aprenda. Esse é o problema básico. Por que o aluno iria aprender? Por que o aluno iria estudar? Por que ele iria ter uma atividade intelectual, que é fazer um esforço? Por que ele iria fazer esse esforço? Qual o sentido de ir à escola? Um aluno deu-me uma resposta, dizendo: “Na escola eu gosto de tudo, fora das aulas e dos professores”. Eles gostam de ir à escola, porque é o lugar dos coleguinhas. O problema é saber se eles gostam de ir à escola para aprender.

A questão pedagógica básica é simples. Há três palavras: atividade intelectual, portanto sentido, portanto prazer. Quando digo prazer, não estou falando de algo fácil. Quem faz esporte sabe que o prazer pode vir do esforço. A escola é lugar de esforço. O esforço pode ser prazeroso. Será que encontro prazer na escola ou só encontro fracasso e humilhação?! Será que eles encontram sentido na escola quando esta só os faz memorizar coisas que não entenderam (ou até mesmo inúteis)?!

Por isso, na pesquisa tentei entender o sentido de ir para a escola quando se é um menino ou adolescente. Pesquisamos do ensino infantil até o ensino médio. Sabemos que, em grego, a palavra scholê significa lazer, um lugar em que se tem tempo para refletir, teoricamente, onde não se encontra a pressão pela produtividade. Mas, nas nossas escolas, é raro que a professora tenha tempo. A escola é um lugar em que a professora corre e tem alguns alunos que correm com ela e outros que olham de longe.

Desigualdade social e relação com o saber
O problema básico é a questão do que os sociólogos chamam de reprodução social. Eles mostram que existe uma correlação estatística entre a origem social e familiar da criança e o sucesso ou o fracasso escolar da criança. Houve uma tradução equivocada das pesquisas nesse ponto: os jornalistas, os militantes, muitos professores traduziram essas pesquisas com a ideia de que a família é a causa do sucesso e fracasso escolar. Uma ideia equivocada. Nunca essas pesquisas mostraram que a família é a causa do sucesso ou do fracasso escolar. Existe uma correlação estatística entre a origem social e o sucesso escolar. Correlação não é causa. Pode existir uma correlação entre dois fenômenos sem que um seja a causa e o outro, o efeito. Em particular, quando esses dois fenômenos são consequências e efeitos de uma mesma causa.

Vou dar um exemplo, com uma brincadeira e com um exemplo mais acadêmico. Existe uma correlação estatística entre a hora em que eu me barbeio e a hora em que o galo canta. Se uma pessoa notar a que horas as duas ações acontecem, pode verificar uma correlação estatística, mas é claro que não me barbeio porque o galo canta! E o galo não canta porque eu me barbeio! Não existe nenhuma relação de causa/efeito. Outro exemplo, encontrei-o em uma revista de uma pequena ilha francesa que fica no sul da África. Ela explicava que existe uma correlação estatística entre o número de alunos na classe de alfabetização (1º ano), que moram em uma casa com banheiro, e o número de alunos que vão saber ler no final do ano. Seria a mesma coisa no Brasil. Quanto mais alunos vivem em uma casa que tem banheiro, mais alunos você terá sabendo ler no final do ano. É uma correlação estatística, pode-se fazer uma previsão. Agora, podemos transformar essa correlação para uma relação de causa/efeito? Claro que não. O fato de poder tomar banho não ajuda a ler. Cada vez que se diz que a família é causa do sucesso e do fracasso escolar, é como se dissesse que o banho ajuda a aprender a ler.

Vamos continuar refletindo. Claro que existe uma relação entre a origem social e o sucesso e o fracasso. Se não houvesse nenhuma relação, não teria correlação estatística; mas essa relação não é de causa e efeito. Eu posso fazer hipóteses, pensar que em uma ilha pobre, em um país como o Brasil, quem tem apartamento ou casa com banheiro, tudo isso, tem pais com um pouco de dinheiro... Os pais que têm um pouco de dinheiro têm determinadas práticas culturais. Entre elas, provavelmente, leem livros, jornais ou revistas. Portanto, provavelmente, os filhos têm a oportunidade de ver os pais lendo e têm mais desejo de aprender a ler. Portanto, existe uma relação entre o banheiro e o fato de aprender a ler, mas não é uma relação de causa/efeito.

Há muitos intermediários entre a origem social e o sucesso e o fracasso escolar. Isso significa que o fato de as crianças serem filhas de famílias pobres, populares, é importante, mas não é determinante! Isso significa que o nosso trabalho na escola é importante, porque não é a família que determina o sucesso e o fracasso escolar. A família participa da história, mas o que vai decidir o resultado é um conjunto de práticas da família e da escola, o que significa que podemos mudar o destino escolar dessas crianças. É mais difícil com crianças mais populares do que com crianças de classe média, ainda que, de vez em quando, com os nossos próprios filhos não seja tão fácil assim! Mas sempre é possível e as práticas das professoras são essenciais.

Por exemplo, aqui na plateia há filhos e filhas de meios populares que passaram a ser professores/as. Esse não era o destino estatístico de vocês. É verdade que é mais difícil ser bem-sucedido na escola quando se pertence a uma família popular, mas não é nada impossível! Hoje em dia, não se pesquisa o fracasso escolar dos jovens dos meios populares, pesquisa-se o sucesso escolar paradoxal de alguns filhos do meio popular. Temos que entender que o fato de existirem dificuldades socioeconômicas não determina o comportamento escolar dos alunos. Claro que muitos alunos se afastam da escola porque têm muitos problemas, mas há o caso contrário também! Encontrei, na França, as filhas de imigrantes que têm que cuidar dos irmãos, ajudar na faxina da casa, nas tarefas domésticas, e elas ainda vão para a escola! Elas dizem “ainda bem que tem a escola, porque é na escola que encontramos outra vida, e é na escola que podemos sonhar com uma outra vida”.

A dificuldade familiar e social das crianças faz com que nosso trabalho seja mais difícil, mas a escola, como um lugar de prazer, pode fazer com que a criança, que vive coisas difíceis, encontre na escola um mundo em que vale a pena viver.

Resultados de pesquisa: quatro relações com o estudo

Os alunos raciocinam dentro de uma lógica dominante do estudo. Eles não dizem que fracassaram na escola porque são idiotas, mas porque não estudaram o suficiente. Sabemos que é mais fácil dizer isso, mas aqueles bem-sucedidos também dizem que o são porque estudaram muito. Por isso, estudamos a relação desses estudantes com o estudo. Identificamos quatro processos fundamentais.
  • Primeiro: o aluno que adora estudar! Ele começa a ler geralmente aos quatro anos e meio, gosta de ler, gosta de aprender; não temos nenhum problema com ele. O aluno gosta tanto de aprender que nenhum método pedagógico impede-o de aprender.
  • Segundo: o aluno que vive a escola como uma conquista permanente. Por exemplo, José, que nasceu na França, é filho de pai português e mãe espanhola. Ele aprendeu a ler na França e depois os pais decidiram voltar para Portugal, onde ele aprendeu o português. Os pais decidiram ir para a Espanha, e ele teve que aprender o espanhol. Depois, voltaram para a França. Ele tem todas as características para ser fracassado, mas é o melhor da turma! Ele diz que tirou uma boa nota, mas não é suficiente, porque, na próxima semana, ele terá mais uma prova e terá de tirar de novo uma boa nota! É a escola como conquista permanente, o que chamamos de voluntarismo. Existe uma vontade enorme de ser bem-sucedido! Resta saber por que há alunos que vivem na escola com voluntarismo e outros que não. Cuidado com as palavras. É a mesma coisa com a palavra “preguiçoso”. Quando eu falo com as professoras, às vezes elas me dizem que as crianças não querem estudar, são preguiçosas. E, quando pergunto por que as crianças não querem estudar, elas dizem que esses alunos são preguiçosos, não gostam e não querem estudar! A palavra “preguiçoso” não explica nada. Ao dizer que o aluno é preguiçoso, eu me livro da pergunta, porque estou supondo que ele tem uma característica profunda, natural, que é a preguiça. Minha filha que tem um ano e meio não é preguiçosa. Ela abre todas as gavetas, joga as coisas fora. O problema é saber o que acontece na nossa sociedade, nas nossas famílias, nas nossas escolas, que faz com que uma criancinha queira descobrir o mundo, entender tudo, tanto que prefere as minhas coisas aos brinquedos! Depois chega aos 5, 6, 7, 8 anos e fica preguiçosa. Essa é a pergunta fundamental.
  • O terceiro tipo de relação de estudo eu vou pular porque é o mais frequente. O quarto tipo: os alunos que são completamente perdidos na escola. São alunos de quem vocês falam em termos de evasão escolar. Na França falamos de abandono. Acho que é uma forma equivocada de levantar o problema, porque eles não se enquadram no fenômeno de evasão, já que nunca entraram na escola! São alunos matriculados administrativamente na escola; alunos que estiveram presentes fisicamente, mas que nunca entraram nas lógicas simbólicas da escola, que nunca entenderam do que se trata. Isso significa que o problema não é saber por que eles saem da escola, mas saber por que eles nunca entraram. Ao pesquisar o abandono, estamos supondo que eles entraram na escola; eles abandonaram a escola apenas fisicamente.
Estou pensando em uma adolescente de 15 anos que nos explicava que, quando chegava à escola, pensava “a professora vai pegar no meu pé”. “A escola é sempre a mesma coisa”, reclamam muitos jovens. Quando chega a segunda-feira, já se sabe tudo do dia e da semana. Na escola nada acontece; na escola, não tem aventura, nem aventura intelectual! Eles são adolescentes e querem coisas novas! “Na escola, ensina-se História uma hora, duas horas, três horas... Tudo bem!”, explicou a adolescente, “Mas toda semana?!” Encontrei muitos alunos, no Brasil e na França, que explicam que História é uma coisa antiga. As décadas de 60 e 70 são coisas antigas, que aconteceram quando eles não tinham nem nascido e, portanto, ninguém sabe se é verdade! Às vezes a televisão mostra, o que dá mais credibilidade, mas, mesmo assim, eles não tinham nascido. História é ensinar coisas antigas e não verificadas, contam eles. Toda semana essa adolescente tem um professor de História na sua frente que não sabe disso. Ele pode usar qualquer método pedagógico, tradicional ou construtivista. O que vai fazer a diferença é saber se a situação vai permitir construir um sentido para ensinar e aprender História! Há muitas crianças nessa situação, ou seja, para quem a escola não faz sentido!

Isso está relacionado com as nossas práticas. Por exemplo, a escola é um lugar em que quem sabe (o professor) pergunta para quem não sabe (o aluno). A professora só pergunta quando ela sabe, para saber se o aluno sabe. “Na vida real”, quem não sabe pergunta para quem sabe. A escola é um lugar onde não se devem levar a sério as perguntas da professora! Devem-se interpretar as perguntas, porque elas remetem a um assunto diferente do aparente.

Por exemplo, um colega da Universidade do Porto, em Portugal, que foi muito tempo professor de Gramática, contou-me esta história: “Gramática não é fácil de ensinar. Estava ensinando o que era sujeito e perguntei aos alunos: Eu vou pescar. Quem vai pescar?! E os alunos falaram: É O SENHOR, PROFESSOR!”. Ele queria saber qual era o sujeito! Nossas práticas têm de ser interpretadas! A primeira coisa que deve ser ensinada nos primeiros anos é como funciona a escola, mas a escola não ensina isso explicitamente. O aluno tem de entender, e é claro que o filho de classe média tem mais chance de entender isso do que o filho do operário!

Voltemos ao terceiro tipo de relação com o saber que não expliquei. Nas classes trabalhadoras e também nas classes médias, muitos alunos vão para a escola “para passar de ano”, depois “passar no vestibular”, depois “ter um diploma” e, por fim, “ter um bom emprego”. O Ministro da Educação do Brasil chama-se Senhor Vestibular, porque ele decide as coisas mais importantes! O ensino tem como referência o vestibular e depois o trabalho. O fato de ir para a escola para ter um bom emprego é real. O problema é que há cada vez mais alunos voltados a ter um bom emprego apenas e que não entendem que, para isso, tem que ter formação, aprender coisas. Há muitos alunos que vão para a escola para fazer o que a professora disse que tem de fazer e para passar de ano! Tem cada vez mais alunos que nunca encontraram o saber como sentido ou prazer. Eu fui à escola para passar de ano, mas havia matérias que eu adorava e outras que eu odiava; inclusive as matérias que eu odiava, eu podia ser o primeiro da turma, porque estudava para passar de ano e ter um bom emprego! Mas tinha matéria que estudava não só para passar de ano, mas, sim, porque encontrei o sentido e o prazer de aprender! O problema é que tem cada vez mais jovens que vão à escola para passar de ano e somente para isso, o que gera dificuldade para ensinar.

É interessante o caso de alunos que batem em outros que são bons alunos, que vocês chamam de CDF! Na lógica dos alunos que batem, os CDFs são traidores! É só imaginar uma sala em que há muitos CDFs. Isso traz problemas para os outros alunos que não são. Para passar de ano, tem que tirar a média. Quando não tem CDF, não tem problema, mas, quando existem muitos CDFs, a professora vai se tornar mais exigente, a prova vai ficar mais difícil. Os não-CDFs entendem que quem está com 5 vai ficar com 4,5 e não vai passar de ano! O CDF não ganha nada, porque ele não precisava de nota alta. Com 5 ou 7 ele passa de ano! Ele prejudica os demais sem ganhar nada! Na lógica da classe trabalhadora, o CDF é um traidor! Os jovens dessa classe não têm “carências culturais”, mas têm outras formas de aprender na vida para sobreviver! Não são mais idiotas ou menos que os outros, mas têm outra relação com a escola e com o saber. O pai sabe que no sindicato tem de haver solidariedade. “Quem trabalha para o patrão” é considerado traidor! A mesma coisa ocorre com os alunos. Eles têm uma relação social com o saber e com os pais.

Também há muitos jovens que acham que quem deve ser ativo no ato do ensino-aprendizagem não é o aluno, mas o professor. Um aluno disse-me que o cérebro dele era como um gravador: a professora fala e o cérebro grava. Outro disse que o professor era ótimo, porque, quando falava, as palavras entravam diretamente em sua cabeça. Esse é o modelo implícito de muitos alunos. Eles esperam que a palavra da professora entre diretamente na cabeça deles.

Está chegando o dia em que teremos de utilizar uma pedagogia mais construtivista, mas o problema é que os alunos não são construtivistas! Muitos deles não estão esperando uma pedagogia ativa, mas, sim, uma pedagogia sem risco para passar de ano. A pedagogia ativa é uma conquista da professora com a turma, e, no início, não é essa pedagogia que os alunos estão esperando! Eles esperam uma pedagogia bem tradicional, com tarefas, sem nenhum risco. Temos que mudar isso, mas temos que saber que um trabalho com paciência da professora é essencial para os alunos entenderem que pedagogia como atividade do aluno pode ser um prazer e mais interessante; mas isso se constrói aos poucos.

Quando o aluno pensa que quem é ativo no ato da aprendizagem é a professora, ele pensa que há uma injustiça na escola. Ele considera que o trabalho do aluno é ir à escola para escutar a professora. O que vai acontecer depende dela. Se ela explicar bem, o aluno vai saber. Se ele tirar nota ruim, é porque ela não explicou bem. O fracasso, na lógica do aluno, é culpa da professora! Ele acha uma injustiça a professora dar nota ruim. Para ele, é a professora que merece a nota ruim! Tem de haver um jeito para que o aluno entenda que ele tem de ter atividade intelectual para aprender!

Encontramos também alunos que têm o que chamei de relação binária com o saber. Começando por um exemplo: uma vez uma universitária encontrou uma criança que estava em sua terceira tentativa de aprender a ler e ela perguntou para a criança o que a criança fazia quando não sabia ler uma palavra. A criança disse que, quando não sabia ler uma palavra, lia outra! Isso é muito lógico em uma lógica binária! Se não sei, não posso ler. Só posso ler quando sei. Quem funciona nessa lógica nunca vai aprender a ler.

O aluno bom ou médio diz que se pode aprender um pouco mais a cada dia. Ele tem uma relação progressiva com o saber. O aluno binário não é idiota, porque se encontra o mesmo problema em um diálogo de Platão, 25 séculos atrás, em que Sócrates pergunta como se pode aprender uma coisa. Se eu já conheço a coisa, não vou tentar aprendê-la. Se eu não a conheço, tampouco vou tentar aprendê-la, já que não a conheço. Foi uma dificuldade que encontrou o espírito humano em seu desenvolvimento coletivo, e que muitas crianças encontram em seu desenvolvimento individual.

Foi feita uma pesquisa na França sobre isso, com uma pergunta interessante: “Como se faz para aprender a ler?”, perguntaram aos alunos. Alguns explicam que têm que se concentrar para aprender a ler. Outros dizem que tem que olhar os lábios da professora. Muitos alunos acham que a professora pode ler a história porque já a conhece. Tudo isso faz com que não tenha sentido aprender a ler. Os pais dizem às crianças que vão aprender uma coisa extraordinária que vai mudar a vida delas, que é ler. Não devem fazer isso! Isso significa que a criança está em uma situação de não saber e vai entrar na do saber, o que é uma relação binária. Tem que dizer a elas que elas já sabem ler um pouco, que vão aprender mais coisas! Do contrário, podem bloquear todo o processo.

Verificamos também o que as crianças das 4as séries entendem quando se fala em estudar. Elas dizem que na escola têm que estudar, mas, para elas, o que significa aprender? Crianças brasileiras, de 4a série, em 10 estados, inclusive São Paulo, têm duas respostas. A primeira é: estudar é igual a fazer. Isso é uma catástrofe, porque estudar supõe uma atividade intelectual e, quando o aluno acha que estudar é fazer, é porque a professora diz que tem que fazer! Isso significa que o que é dominante na cabeça do aluno não é o fato de aprender, mas fazer como a professora disse que deve ser feito. Quando meus filhos voltavam da escola, eu perguntava o que eles tinham feito lá. Só que a boa pergunta não é o que ele fez, mas o que ele aprendeu na escola! Por exemplo, na educação infantil, quando vejo um aluno que faz exatamente o que a professora disse, fico preocupado, porque a criança está obedecendo à ordem do adulto. Quando vejo um aluno que entra na tarefa e, aos poucos, começa a fazer outra coisa, sei que ele entrou em uma atividade e começou a se apropriar dela, saindo do fato de obedecer à professora. Acho isso importante!

O segundo tipo de resposta dos alunos da 4a série é o que chamei de Teoria Brasileira dos Três Bês. Na escola, tem que estudar e não bagunçar, brigar ou brincar. Na escola, temos de escutar a professora, pensam os alunos. Portanto, o mais importante é não bagunçar? E o saber? E aprender coisas? Fizemos também, na França e no Brasil, uma outra pergunta: “O que é um bom aluno?”. Eles responderam que é aquele que chega à escola na hora certa e levanta a mão antes de falar na sala de aula. Vejam só! Eles definem o bom aluno sem cogitar o fato, o qual realmente importa, que é se ele aprendeu ou não muitas coisas! Quem colocou isso na cabeça do aluno? Não é a família, mas a própria escola, que ensina que o mais importante é respeitar as normas da escola, e não aprender! Temos que ensinar às crianças que o mais importante é aprender na escola!

Pedimos também para elas relatarem um dia na escola. Elas descreveram que tiraram o casaco, abriram a mochila, subiram as escadas, a professora distribuiu cadernos e depois colocaram o casaco, fecharam as mochilas e foram embora. A escola é isso para elas. O fato de aprender não existe na fala das crianças com 5 anos! Muitas vezes encontramos alunos que nem podem dizer o que eles estudaram naquele dia. Um colega da minha equipe entrevistou uma adolescente e perguntou o que ela havia estudado naquele dia. Ela disse: “Matemática”. “E o que você estudou em Matemática?”. “Coisas muito importantes”. Geralmente, dizem que na escola se estudam coisas muito importantes, mas não sabem, não conseguem dizer mais nada! O colega passou 20 minutos com essa jovem sem conseguir que ela nomeasse objetos de estudo. Verifique com seus alunos, depois de uma hora ensinando alguma coisa. No dia seguinte, pergunte o que eles estudaram no dia anterior. Alguns vão responder, mas vários alunos nem podem dizer o que foi estudado. Isso é importante, porque os psicólogos falam de clareza cognitiva: quando não se pode identificar um conteúdo intelectual, não se pode aprender! Eu digo que na escola há muitos OPNIs (objetos pedagógicos não-identificados!). Os alunos nem sabem o que é ensinado!

Perguntamos também aos pequenos, no final do ensino infantil e 1ª série do ensino fundamental, o que eles fazem quando não entendem. Eles responderam que levantam o dedo e perguntam para a professora. E vocês sabem, eles levantam o dedo antes de a professora ter terminado a frase, porque há concorrência, eles levantam o dedo de imediato! Esses alunos dependem totalmente do adulto, têm uma relação de somente obedecer à professora. Há outros alunos, bons alunos, que dizem que, quando não entendem, eles refletem, tentam e, se não conseguem, levantam o dedo para perguntar à professora. Isso significa que esses alunos, bons e médios, não vivem uma relação com dois polos, mas com três: o aluno, a professora e uma outra coisa que é o saber. Mais uma coisa: identificamos que existem alunos que escutam a professora e alunos que escutam a aula. Os alunos bem-sucedidos às vezes dizem que têm que escutar a professora, mas, quando o aluno diz que tem que escutar a aula, é sempre de médio a bom aluno. Escutar a professora e escutar a aula não é a mesma coisa! Claro que, muitas vezes, para escutar a aula tem que escutar a professora. Mas existem alunos que ouvem o adulto falando e alunos que escutam o que esse adulto diz. É bem diferente! Quando os pais enviam as crianças para a escola, dizem: “Você tem que escutar a professora”. Esse é mais um erro. Não se vai à escola para escutar a professora, mas para escutar a aula. Além disso, vai-se à escola para aprender!

Esses são os fatos mostrados pela pesquisa. Não há nada de estatístico, de técnico, de complicado. Tudo o que eu disse hoje vocês podem verificar na sua sala de aula, e vale a pena verificar! Há coisas que estão acontecendo também na família. Hoje destaquei as coisas relacionadas à escola, porque são as mais úteis para vocês entenderem. Se houvesse uma conclusão, eu iria terminar como eu comecei: Por que vale a pena ir à escola? Por que vale a pena aprender coisas totalmente inúteis, como Gramática e a maior parte da Matemática?! A escola ensina coisas inúteis, mas que são muito importantes! Ensinamos coisas muito importantes que não têm nenhuma utilidade imediata, mas temos que ensinar essas coisas, porque são importantes! Por isso, temos que continuar ensinando, temos que continuar refletindo: Por que vale a pena ensinar Gramática, Biologia, Matemática, além das bases?! Por que vale a pena ensinar História, se o aluno não sabe por que estuda e, às vezes, nem mesmo a professora sabe por que ensina?!

A resposta a essas perguntas passa pela atividade intelectual, pela questão do sentido de aprender, por que aprender, pela questão do prazer do aluno em aprender. E da professora também! Da atividade intelectual da professora, do sentido em ensinar, do valer a pena ensinar, do prazer de ensinar! Sem atividade intelectual de professor e aluno, sem fazer sentido aprender e ensinar, sem prazer de aprender e de ensinar, a escola não tem sentido.


* O texto é um capítulo do livro digital Educação e Diálogo, mencionado na postagem anterior.


** Bernard Charlot é Professor emérito de Ciências da Educação na Universidade Paris 8. Dedica-se ao estudo das relações com o saber, principalmente da relação dos alunos de classes populares com o saber escolar. Atualmente, é Professor Visitante na Universidade Federal de Sergipe (UFS), em Aracaju. Integra o Comitê Internacional do Fórum Mundial da Educação, de Porto Alegre (RS), do qual também é um dos fundadores. Este texto é uma síntese de palestra realizada no III Encontro de Educadores de Várzea Paulista, 31/07/2007.

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